''Meu ex matou nossos filhos, colocou fogo em mim e me jogou de um prédio''
Lembro do calor insuportável. Do cheiro de carne queimada.
Da fumaça ardendo na garganta. Lembro de sacudir meu corpo em chamas, numa dor
que fazia cada segundo ser pior do que o anterior. Lembro de correr para a
janela pedindo por socorro. Lembro de sentir o João me empurrar pelas costas.
Lembro de cair do terceiro andar e de pensar: ''Vou morrer''. Lembro. E eu daria
tudo para esquecer! Mas as cicatrizes do corpo e da alma nunca deixarão essas
memórias para trás.
Não sei dizer quando nem por que o João deixou de ser um
companheiro amoroso e virou um assassino. Não sei nem se ele virou ou se sempre
foi. Só sei que ele entrou na minha vida como uma bênção e acabou se
impregnando como uma maldição que, por mais que eu lute, me torturará até o fim
dos dias.
Quem dera poder voltar a 2011 e dizer 'não' quando o João,
com quem eu tinha amigos em comum, me pediu para aceitá-lo no Orkut! Mas como eu, então com 16 anos,
resistiria a um cara tão carinhoso, com 19 anos, que me fazia rir mais e mais a
cada encontro? Que se apaixonou por mim mesmo eu estando grávida de seis meses
de outro relacionamento?
Foi tudo tão intenso que, em poucos meses, decidimos que eu
moraria com ele, sua mãe, seu padrasto e sua irmã. ''E, quando a Isadora nascer,
vou registrar como minha filha'', anunciou João, que estudava educação física de
noite e, de dia, trabalhava com atendimento de cartões de crédito. Assim,
apoiados tanto pela família dele como pela minha, iniciamos nossa vida.
Romântico e atencioso, ele me mimava e se entusiasmava quando falava do
nascimento da ''nossa filha''. Eu jamais poderia imaginar que, quando ela
chegasse, meu sofrimento infinito fosse começar.
Descobri que João
usava cocaína
À medida que meu corpo de grávida voltava ao normal e eu
retomava minha vaidade, o João ia se transformando. O parceiro descontraído deu
lugar a um homem obcecado, com ciúme de tudo e de todos. As discussões viraram
rotina e se agravavam a cada dia. Quando dei por mim, ele queria me proibir até
de falar com minhas amigas!
Em 2011, arranjei emprego na parte administrativa de uma
loja de móveis e eletrodomésticos, mas ele nunca aceitou. Chegava a se hospedar
no hotel ao lado de onde eu trabalhava para ficar me vigiando. Dava tanto
escândalo na frente dos meus colegas que o jeito foi eu pedir demissão. Minha
vida ficava cada vez mais difícil, mas eu sempre cedia no fim das discussões e
insistia naquele relacionamento doentio. Porque ele me manipulava. Porque eu
queria ter minha família. Cheguei a duvidar quando amigos em comum vieram me
contar que ele estava daquele jeito por usar maconha e cocaína. ''Ele sempre foi
agressivo com todas as mulheres que passaram pela vida dele'', alertou um dos
amigos mais chegados.
Chocada, tirei a história a limpo. João confirmou, mas jurou
que não usava mais. Disse ainda que nunca tinha sido viciado, que usava só
quando queria. Acreditei. E paguei o mais alto dos preços por isso.
Cansei das mentiras e
porradas; estava disposta a sair da relação
Um mês depois, tive a certeza de que João havia mentido. Era
fácil perceber quando ele chegava em casa alterado. Já entrava gritando, puxava
meus cabelos e me espancava. A família dele não se intrometia e também me
manipulava para ficar ali. De repente, me vi no inferno, privada de ver as
pessoas, de trabalhar, de ter qualquer vaidade.
Em meio a tudo isso, tentava ter uma vida a dois ''normal''.
Acabei engravidando. Ele nunca foi um pai carinhoso para Isadora, mas confesso
que tinha esperanças de que a chegada do Henrique o mudasse. Porém, isso jamais
aconteceu.
Ele não me batia grávida, mas me dava beliscões. Meu segundo
filho nasceu prematuro de sete meses, mas saudável. O João foi visita-lo duas
vezes e reclamava porque eu passava o dia todo no hospital.
Nós já estávamos separados, mas eu continuei morando com a
mãe dele e ele se mudou para casa da avó. Em uma conversa, disse para ele que
começaria um curso de cabeleireira e ele me ameaçou. ''Faz isso para você ver o
que acontece contigo''. Não acreditei. Quatro dias antes de começar o tal curso,
com entusiasmo para viver a minha independência financeira, João cometeu uma
atrocidade inenarrável...
Ele me fez desmaiar,
jogou álcool no meu corpo e ateou fogo
Era novembro de 2013 quando eu e as crianças estávamos no
apartamento da avó do João. Ela tinha ido viajar e ele me ligou pedindo para
conversar. Implorou para ver as crianças. Eu estava acordada no quarto. Do meu
lado, dormiam meus anjinhos – Isadora e Henrique – ela com 2 anos e ele com
apenas 3 meses. O João chegou e ficou nos observando em silêncio na porta. Sua
expressão era estranha, tinha um ar de deboche. Fui para sala e a discussão
começou porque eu não queria voltar para o relacionamento. Já era tarde da
madrugada e eu fui dormir no sofá para acabar com a briga e não acordar as
crianças.
Acordei com o João me espancando. Toda ensanguentada pelos
socos e coronhadas, eu pedi pelo amor de Deus para ele parar. Só conseguia
pensar nos meus filhos. Tentei ainda pegar meu celular para chamar a polícia,
mas ele tirou da minha mão e quebrou. Ali eu já sabia que algo ia acontecer.
Ele me mandou calar a boca e disse que ia me matar. Ele me obrigou a deitar de
bruços no sofá, sentou na minha lombar e começou a tentar quebrar o meu
pescoço. Acabei desmaiando.
O cheiro de álcool na minha cara me fez despertar no momento
em que ele riscava o palito de fósforo e ateava o fogo em mim. Sentindo a
terrível dor das chamas pelo meu corpo, corri para a janela da área de serviço
tentando pedir socorro. Foi aí que o João me pegou pelas mãos e me atirou do
terceiro andar. Lá embaixo, queimando viva, eu gritava para salvarem os meus
filhos. Ênio – vizinho do prédio, foi em direção ao apartamento, mas não
resistiu a fumaça e faleceu sufocado no corredor.
Eu ainda fui colocada na ambulância com aquele monstro. Ele
debochava de mim. Eu perguntava pelos meus filhos e todos diziam que eles
estavam bem. Cheguei em estado gravíssimo no hospital e tive forças para dar
meu depoimento para o delegado. Naquele momento, o João confessou o crime.
Fiquei quatro meses
internada
Quebrei três vértebras da coluna, os dois tornozelos, o dedo
do pé esquerdo, os calcanhares e meus joelhos. Meu fêmur entrou 2 cm na bacia,
que ficará para sempre lesionada. Tive 40% do corpo queimado e, no lado direito
da minha cabeça, onde o crânio foi aprofundado, já não nascem mais cabelos.
Perdi a orelha direita e 60% da visão do olho direito – ainda preciso de um
transplante de córnea.
Fiquei 45 dias na UTI, em coma induzido. Ao todo, foram
quatro meses de internação. Fiz mais de 200 cirurgias para me recuperar e
enxertos, que deixaram cicatrizes, inclusive no meu rosto. Tive uma infecção
generalizada por um abcesso no fígado e por pouco não morri na mesa de
cirurgia. Fiquei quase paraplégica e hoje ando de muletas.
Meu corpo dói. Provavelmente doerá para sempre, mas isso não
é nada perto da dor que eu senti quando eu saí dos quatro meses de internação e
soube da morte dos meus bebês. Meus filhos morreram naquele apartamento. O
próprio pai os deixou morrer. Abrir os olhos todos os dias de manhã e não poder
tocar, sentir e proteger a Isadora e o Henrique é o que destrói meu coração. É
a maior de todas as dores.
João foi preso em flagrante. Foi resgatado do apartamento em
meio às fumaças, mas sem um ferimento sequer. Ele foi levado para uma casa
prisional psiquiátrica e foi constatada a plena consciência dos seus atos
naquele dia. Seu pai é advogado criminal e já conseguiu diversos recursos para
atrasar o processo do João – que até hoje não foi julgado.
Eu sobrevivi para
fazer justiça
Descobri que não sou a única e decidi não ser só mais um
número na estatística da violência doméstica. Recebo diversas mensagens de
mulheres que sofrem dentro das suas casas. Com medo de denunciar, elas me pedem
por socorro. E foram as inúmeras palavras de força e a vontade de lutar por
justiça que me motivaram a criar o Instituto
Barbara Penna. Precisamos da ajuda das pessoas, das empresas e do Estado
para exercer o objetivo do Instituto: ajudar mulheres com tratamento
psicológico, jurídico e assistencial. Encorajá-las a não se calar. Nossa grande
intenção é a de salvar vidas.
Eu trago as marcas na carne e na alma. O vazio da falta dos
meus anjinhos é eterno. Tem dias que só quero ficar deitada chorando, mas
consigo ter forças por todas nós. Então levanto e vou à luta. Eu luto
diariamente para provar que a culpa nunca é da vítima. Eu luto todos os dias
porque quero justiça. Transformo a dor dessa tragédia em energia para seguir em
frente, batalhando por dias melhores para mim e para todas as mulheres que,
neste instante, sofrem com a violência doméstica – um mal silencioso e
devastador. O monstro que matou o que eu tinha de mais precioso não vai fazer
novas vítimas. Não enquanto eu estiver viva!
Barbara Penna, 23 anos, estudante e ativista pela violência contra mulher, Porto Alegre, RS.
Barbara Penna, 23 anos, estudante e ativista pela violência contra mulher, Porto Alegre, RS.